por Flaviana Serafim
Construir um projeto nacional cujo modelo viabilize a superação das desigualdades. Na avaliação da historiadora Selma Rocha, diretora da Fundação Perseu Abramo, este, e não o preconceito em relação às mulheres, é o grande desafio da possível candidata a presidência daRepública pelo PT, a ministra da Casa Civil Dilma Rousseff.
Na sede da Fundação, Selma, que completa 50 anos neste 2009, conta empolgada o início da sua militância em meados da década de 1970 e, comemora, agora, a chegada do primeiro neto. “Minha primeira atividade política, aos 15 anos, foi ir a missa (culto ecumênico) pela morte do jornalista Wladimir Herzog (assassinado sob tortura dentro do DOI-Codi de São Paulo), na catedral da Sé”, relata.
Image Selma está entre as inúmeras mulheres que enfrentam o duríssimo dilema de fazer política, engajar-se e se dedicar aos filhos, família, casa, relacionamentos, profissão... Apesar das dificuldades de conciliar tudo isso, ela nunca abandonou a militância .
“Tinha uma coisa muito bonita naquele período que era uma solidariedade maior entre as mulheres. Lembro que eu ia para reuniões do PT com meu filho bebê, levado numa cestinha, e muitas companheiras ficavam com ele para eu poder falar”, recorda a historiadora.
Na análise de Selma, faltam condições de igualdade para participação política feminina. Ela não acredita que leis, como a que determina cota de mulheres candidatas em cada partido, possam pôr dar fim ao problema da discriminação e da jornada dupla, por exemplo. Mas, elogia e reconhece o lado positivo de leis como essas que, em sua avaliação "empurram"as mulheres para a frente política.
Direitos das mulheres, aborto, a árdua tarefa de conciliar filho, trabalho e engajamento e, claro, Dilma Rousseff na presidência da República, estão entre os temas analisados pela historiadora. Confira:
[Site do Zé Dirceu] O que te moveu para o engajamento político, até sua chegada ao PT?
[Selma Rocha] Minha história é curiosa porque comecei minha atividade política muito cedo e por causa da arte. Comecei a fazer teatro entre os 13, 14 anos, e me envolvi com uma turma que tinha ligação com o Partido Comunista.
Eu discordava um pouco daquela idéia de que toda arte tem que estar engajada. Essa discordância tinha um sentido de liberdade porque eu achava que a arte tinha que ser livre. Por conta desse debate, comecei a conversar com um grupo de trotskistas, que eu nem sabia o que era. Tudo isso aconteceu no âmbito do movimento cultural do qual eu participava, na Vila Prudente (zona leste paulistana).
Minha primeira atividade política foi ir à missa do Herzog
Fui de uma organização trotskista até a fundação do PT, na década de 80. Naquela época, havia uma discussão intensa sobre os rumos da organização política dos trabalhadores brasileiros e me engajei nesse processo.
Minha primeira atividade política foi ir a missa (culto ecumênico em setembro de 1975) pela morte do jornalista Wladimir Herzog (assassinado sob tortura dentro do DOI-Codi de São Paulo), na catedral da Sé. Eu tinha 15 anos e foi a partir daí que comecei a me aproximar da militância política.
Quando o PT foi fundado, o grupo do qual que eu fazia parte tinha uma opinião bem sectária porque questionava a estrutura sindical atrelada ao Estado. Para eles um partido que nascia do chamado “peleguismo”, como eles classificavam os sindicalistas fundadores, estaria atrelado àquela estrutura ligada à ditadura.
Mas essa fase durou pouco porque todos começamos a ter contato com o partido. Então, uma parte da organização decidiu que experimentaria a entrada no PT e eu estava neste grupo, em 1981. Lembro bem disso porque foi o ano em que meu filho nasceu.
Fui da executiva do PT em Osasco e em São Paulo, onde trabalhei fundamentalmente com o movimento popular e, depois, com educação. Tem que existir solidariedade internapara que existam igualdades de condições
[Site do Zé Dirceu] E como era a aceitação das mulheres pelas pessoas que fundaram o PT no início dos anos 80?
[Selma Rocha] Havia – e acredito, exista até hoje – uma contradição no PT em relação à participação das mulheres. Hoje há um avanço. Naquela época já havia um respeito, mas existia muita discriminação. Para falar, serem ouvidas e consideradas, as mulheres tinham que brigar.
Mas, também, tinha uma coisa muito bonita naquele período que era uma solidariedade maior entre as mulheres e alguns dirigentes para que elas pudessem se ajudar. Lembro que eu ia para reuniões com meu filho bebê, levado numa cestinha, e muitas companheiras ficavam com ele para eu poder falar.
Num partido de esquerda, considero que esse tipo de solidariedade não pode ser encarada como um problema individual. Os problemas de participação que tem as mulheres, negros, idosos, não podem ser um problema só destes grupos – não num partido de esquerda.
Tem que existir mecanismos de solidariedade interna para que exista igualdade de condições. A participação política das mulheres tem impedimentos que refletem uma desigualdade mais profunda, e não só política. É a desigualdade de direitos entre homens e mulheres na sociedade.
O problema da falta de creches, por exemplo, não é individual, privado. A desigualdade na divisão nas tarefas domésticas é outra questão. A mulher enfrenta dupla jornada, e enfrenta desigualdades no trabalho e em casa.
Ação política não é só guerra,é construção e transformação
Num ponto de vista mais amplo, os passos que o governo Lula deu foram muito importantes por criar uma Secretaria Especial da Mulher (transformada agora em Ministério da Mulher) , além de políticas públicas específicas. Outro ponto foi expor a necessidade de luta pela igualdade de direitos políticos, sociais, bem como políticas de superação desses problemas.
Por outro lado, é preciso um incentivo à participação das mulheres, não só nos partidos políticos, mas também nas organizações e movimentos sociais. É importante que as mulheres – e também os homens – se ocupem em olhar para a ação política não só como uma guerra, mas também como construção de relações, de transformação.
Este olhar é algo que não tem a ver com a linguagem da guerra, mas com a defesa da vida, da proteção das pessoas. É preciso abrir os olhos para pensar a cidade, o Estado, o país e as pessoas de um outro jeito.
Este olhar tem que ter lugar na sociedade e na ação política. Isso ajuda a pensar. Quando essa relação de dominação sobre as mulheres se estabelece, toda a sociedade perde. Perde a democracia, do ponto de vista da participação, mas perde também a ausência dessa perspectiva de mundo que tem a ver com a vida, com a dupla jornada, o trabalho. É importante que a sociedade se ocupe desse olhar feminino porque ele enriquece.
[Site do Zé Dirceu] Qual é o peso da lei de federal 9504/97 determina o mínimo de 30% de mulheres candidatas em cada partido - no aumento real da participação política feminina?
[Selma Rocha] Há um problema mais profundo que é cultural e político, e ligado àquela falta de espaços de igualdade que comentei anteriormente. Tem a ver com os espaços disponíveis para a participação da mulher. As condições não são porque a mulher tem que cuidar dos filhos – e essa é uma opção muito difícil. Muitas vezes eu optei por fazer menos coisas porque a prioridade era cuidar do meu filho.
Eu nunca deixei a atividade política, mas optei por cuidar do meu filho. O espaço de ação política muitas vezes tem uma lógica profundamente competitiva, em que você precisa se dedicar 24 horas por dia.
Problema não tem a ver só com a lei,mas com mudança cultural
O meu grande esforço como mulher foi sempre lutar para que as mulheres tivessem o lugar que podiam, mas que tivessem o seu lugar também do ponto de vista cotidiano da atividade partidária.
Sempre tive muita dúvida se a cota de 30% de mulheres, uma medida artificial, pudesse resolver a discriminação. De qualquer modo, a cota foi importante porque obrigou o debate sobre o lugar que a mulher deve ter na participação política.
Mesmo que a mulher tenha maior dificuldade, a cota obriga-a a ir para a direção, lidar com os problemas reais do poder, os desafios e trazer essas contradições para dentro do PT.
No que diz respeito à solidariedade interna para garantir a participação da mulher, mesmo aquela que tem que cuidar dos filhos, ah...isto está longe de ser superado. Não é um problema que tem a ver com uma lei, mas com uma mudança de cultura.
[Site do Zé Dirceu] Você acha que falta incluir o debate sobre os direitos das mulheres no currículo do ensino, da educação?
[Selma Rocha] Isso envolve uma questão muito maior e que no Brasil está relacionada à discriminação. Envolve a questão da mulher, dos negros. O preconceito é sempre uma forma de afirmar diferenças de classes, de formas de dominação. Uma mulher que ganha menos significa menos gasto com a folha de pagamento das empresas.
E as mulheres trabalham muito! Por conta dessa dinâmica de trabalhar, cuidar dos filhos, da casa, a mulher tem um traquejo para lidar com várias coisas ao mesmo tempo que os homens não tem. O que, obviamente, também quer dizer desgaste físico, psicológico. Há um componente de violência nisso muito forte.
O debate nas escolas tem que levar em conta essa complexidade. A sociedade como um todo tem que se educar para entender o lugar da mulher não como de segunda classe, secundário, subalterno.
Na escola, debate sobre o aborto e os direitos da mulher
Tem que se debater os direitos da mulher sobre o próprio corpo, sobre a gravidez. O diálogo sobre o aborto é muito marcado por um discurso de poder profundo. É indiscutível o direito à vida. Mas ele tem que ser considerado em relação aos direitos da mulher. Ela também é uma vida que precisa ser respeitada.
Caso contrário, vamos enveredar para situações tão preocupantes com essa dos últimos dias, de uma menina de 9 anos (em Pernambuco), que sofreu um estupro e os médicos optaram por interromper a gravidez pelo comprometimento físico, fora o psicológico.
E aí o arcebispo do Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, se manifestou contrário ao aborto em “defesa da vida”. Não é a vida que ele está defendendo, é a procriação. Vida é outra coisa. Essa menina sofreu uma violência sexual brutal e foi absolutamente ignorada em nome de um valor externo. Isso é muito grave e não é defender a vida.
[Site do Zé Dirceu] Como você conciliou família, relacionamentos e os filhos durante sua trajetória de militância?
[Selma Rocha] Eu me separei cedo, mas tive outros relacionamentos e cuidei do meu filho pequeno. Sempre procurei fazer com que meus companheiros soubessem o que eu estava fazendo ali, na militância.
Nunca deixei de ir às reuniões da escola do meu filho, nem de ficar com ele durante a noite e contar estórias, de conversar, fazer comida no fim de semana ou ver a lição de casa. Paralelamente, sempre busquei acompanhar as atividades do PT.
É um esforço grande. Infelizmente, isso foi ficando cada vez mais uma questão individual dentro do PT. Nessa lógica, nunca optei por uma competição desenfreada pelo meu lugar no partido.
Eu não acredito que para lutar pela transformação do mundo, você tem que destruir sua própria vida e as relações de amor e afeto que você preza. Essa contradição não é saudável.
Participação feminina enriquece a democracia e a vida social
Em sempre procurei deixar claro para meus companheiros os compromissos que eu tinha - e tenho - de tornar a sociedade mais justa. Eu acredito nisso. Acredito que os partidos de esquerda e a organização da sociedade sejam necessários para que as pessoas possam se ocupar de algo mais nobre além do que comer apenas.
Acredito nisso e dediquei os melhores anos da minha vida a essa causa – e não me arrependo. Sou uma pessoa feliz por isso, apesar de todas as contradições.
Em 2009, este ano, eu faço 50 anos. Olho para trás e penso no que eu gostaria que fosse diferente: que existisse maior solidariedade para que essas dificuldades não fossem tratadas como um instrumento de poder, de dominação.
Insisto, a maior participação das mulheres vai enriquecer muito a democracia e a vida social. A perspectiva de mundo que as mulheres trazem de suas experiências para o mundo social são muito importantes. As mulheres não são importantes só porque trabalham e cuidam da vida dos filhos, mas porque sua leitura do mundo é importante para que exista mais equilíbrio na vida social.
[Site do Zé Dirceu] E a possível candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff? Como você acha que os brasileiros vão encarar a possibilidade de termos a primeira mulher na presidência? Que desafios você acha que ela vai enfrentar?
[Selma Rocha] Eu vou sentir muito orgulho em ter a ministra Dilma como candidata do PT. Vai ser muito importante para a história do Brasil. Acho que as mulheres vão se sentir muito identificadas com a possibilidade de ter uma mulher no poder.
Ela vai ter o desafio por ser mulher porque a discriminação não está superada. Mas acho também que alguns destes desafios serão muito fortes, muito marcantes e não é só porque ela é mulher.
Dilma é uma das pessoas centrais do governo no sentido de defender um modelo de superação de desigualdades, ancorado na idéia que você precisa fortalecer o emprego, fortalecer o mercado interno - que é oposto daquilo que os economistas e os mentores do neoliberalismo no Brasil defenderam, e todo o primeiro mundo, como nós sabemos.
Essas pessoas, apesar da crise mundial, não deixaram de sacralizar a lógica de mercado como sendo a lógica que deve imperar a despeito do estado das pessoas, de dados humanos.
O mercado tem seu lugar, evidentemente, mas o que foi colocado como fundamental foi que era preciso superar a desigualdade a partir da inclusão, da constituição de um mercado que gera crescimento econômico e que gera mais emprego para poder ter mais consumo.
Dilma candidata: desafio não é o preconceito,é o projeto nacional para o país
As medidas que o Estado tomou nesta direção tem muito a ver com a Dilma. Ela pensa isso, fala sobre isso, são princípios que marcam toda a conduta da ministra no debate econômico, nas propostas de governo - não só na condução do PAC, que é uma parte disto.
A questão é o conceito geral que ela expressa bem: criação de um mercado interno de massa, é reforçar o emprego, é reforçar o consumo. Esta fala da Dilma é muito importante.
Ela vai enfrentar oposição não só porque é mulher, mas porque o que está em questão é um projeto nacional, o projeto que nós queremos. Vamos defender mais empregos, defender uma "constituição" do consumo, medidas que incentivem a produção, o compromisso do empresariado brasileiro com o emprego e não as medidas que salvaram empresários e bancos no passado, a despeito de qualquer compromisso com a sociedade.
Temos toda a necessidade de mais investimento em infraestrutura para que o país continue a crescer e possa se integrar à América Latina.
Projeto político emancipador não é para qualquer mulher
Acho que a Dilma tem uma visão sobre o lugar do Brasil no mundo, em que o importante não é só a articulação dos países da América do Sul ou Latina. Importa é que nos tenhamos um mundo multilateral, onde a noção de soberania possa se exercer verdadeiramente.
Percebo que o compromisso dela com esta perspectiva de desenvolvimento tem a ver com a perspectiva também de exercício soberano dos países, e dos direitos de superar toda exclusão em nível mundial.
Eu me sinto muito orgulhosa de pertencer a um partido que seja capaz de ter a coragem de lançar uma mulher como candidata e enfrentar todas as decorrências que ela e esse fato apresentam. Um projeto político emancipador não é para qualquer mulher.
Isso é o que nos dá orgulho e uma imensa satisfação de lutar pela defesa da superação das desigualdades no Brasil. Eu, pessoalmente, estarei empenhada nisto.
Fonte:www.zedirceu.com.br
Fotos:Flaviana Serafim